Falsificar a História, versão Irene Flunser Pimentel

Detestar um regime político deve dar o direito de falsificar a História? 

Para um verdadeiro Historiador – ou Historiadora – evidentemente que a única resposta possível é não.

Mas é exatamente isso que a “estoriadora” Irene Pimentel faz nesta entrevista. 

Vejamos então alguns exemplos dos disparates que esta senhora diz na entrevista:

I.F.P.: Hoje ainda, defensores do Estado Novo, muitas vezes por ignorância, difundem a ideia de que Salazar diminuiu o analfabetismo, que introduziu os três anos de escolaridade, quando não dizem quatro anos, quando, na verdade, ele os reduziu, de quatro para três. Depois, o Estado Novo tem uma enorme duração e, evidentemente, nos anos 60, o analfabetismo era menor do que nos anos 30, mas sempre muito superior ao da média europeia.

Na realidade isto é completamente falso.

Vamos por partes. Primeiro, o Estado Novo foi na verdade o primeiro e único regime que resolveu o problema secular do analfabetismo em Portugal (entre as crianças, resolvendo por isso o problema a prazo). Foi um processo que começou ainda com a Ditadura Militar/Nacional, antes de 1933. O analfabetismo uma barreira histórica fundamental para o desenvolvimento do país que assim foi levantada. É esta a evidência científica publicada nas melhores revistas científicas internacionais. (Versão em acesso aberto aqui; e ver também este excelente artigo sobre o Plano dos Centenários.) O resto é propaganda, e o palco constante dado a Irene Pimentel pelos media em Portugal é informativo sobre o atraso do país (e sobre a vontade que a senhora tem de aparecer, ao contrário de mim por exemplo, que recuso ir à televisão ou a dar maior parte das entrevistas que me pedem).

Sobre a redução de quatro para três anos, é uma confusão constante de quem insiste em confundir leis e regras de jure com a realidade no terreno, de facto. Os 4 anos obrigatórios da Primeira República eram pura ficção! Daí mais de metade das crianças acabarem analfabetas. O Estado Novo reduziu isto para 3, numa primeira fase, como parte de um esforço mais amplo de fazer o possível, em vez de utopias impossíveis. Ver por exemplo também o excelente trabalho da Matilde Machado e Pedro Maia Gomes sobre esta matéria: o plano dos centenários (construção de escolas) foi uma decisão política. Aumentaram em 60% do número de escolas primárias existentes no país. A falácia das leis bonitas que não saem do papel é uma constante da História de Portugal. E era isso a Primeira República.

A insistência de Irene Pimentel que nos anos 60 o analfabetismo era muito superior à média Europeia também corresponde a uma enorme desonestidade, ou na melhor das hipóteses, confusão. Em primeiro lugar, no que toca às crianças, isso não é verdade. Em finais dos anos 50, o analfabetismo entre as crianças estava essencialmente resolvido. Logo, não podia ser (sic) “muito superior” ao da média Europeia. Segundo, no que toca aos adultos, é evidente que esse era um problema que vinha de trás. O analfabetismo era um problema secular para Portugal, país que no início do século XX era o mais analfabeto da Europa. O Estado Novo fez o maior esforço da Históra de Portugal para resolver isso. Foi o regime que resolveu o problema, levando à convergência. É verdade que numa primeira fase o esforço foi limitado princiapalmente à e escolaridade básica, mas fazia sentido começar por aí. A estratégia resultou. Isso deve ser reconhecido, fria e factualmente, sem julgamentos de moral constantes, e principalmente sem mentiras com a de Pimentel quando nega que o regime tenha diminuido o analfabetismo.

Probabilidade de ser ter diferentes níveis de literacia. 1=analfabeto, até 5=Aprovado no exame do 1o grau ou classe, ou superior. . Fonte: Palma and Reis (2021). Note-se que me mesmo os indíviduos de contexos socio-económicos mais desfavorecidos no Estado Novo tinham uma probabilidade de não ser analfabetos parecida com a dos mais ricos na 1a República.
Probabilidade de um homem de 20 anos ter diferentes níveis de literacia. 1=analfabeto, até 5=Aprovado no exame do 1o grau ou classe, ou superior. Fonte: Palma and Reis (2021). Note-se a gigante queda da probabilidade da categoria 1, e a enorme subida da 5. Estes dados dizem respeito a indivíduos de 20 anos de idade medidos até 1950. Entre as crianças, o analfabetismo foi essencialmente resolvido de forma definitiva ainda nos anos 50.

Depois Irene Pimentel ainda diz:

I.F.P.: (..) um ataque à cidade, porquê? Porque Salazar odiava os grandes falanstérios, as grandes creches, as grandes fábricas onde os operários se juntavam, faziam greve, se revoltavam contra o Estado… ele quer eliminar isso tudo.

Isto é uma tolice completa. É um mito relacionado com o anterior: a ideia de que Salazar gostava de um país pobre, rural, e analfabeto. Na realidade, o Estado Novo correspondeu a um período de rápida industrialização e urbanização do país, especialmente a partir dos anos 50. Veja-se o seguinte gráfico, que mostra a estrutura do emprego da economia portuguesa (% do emprego total), 1953-1973, por setores. Lembro que o setor industrial é o secundário e os serviços o terciário. A agricultura, que o Estado Novo supostamente tanto adorava, é o setor primário:

Fonte: Pinheiro (1997)

Diz ainda Pimentel:

I.F.P.: O fim das escolas mistas também tem esse propósito, cada um no seu lugar ... Cada um no seu lugar, cada um com a sua função, as mulheres no lar a educar, esposas dos seus maridos, eles, teoricamente, a ganharem o salário.

Se Pimentel tivesse lido o meu trabalho – nunca publicou em qualquer revista académica ou editora séria internacional, mas já perdeu tempo a escrever um artigo palerma para o Público contra mim, só que ler e tentar perceber o meu trabalho, isso não, já que opinar é mais fácil- saberia que na verdade essa política de separação dos sexos nas escolas foi um enorme sucesso que levou muitos pais a meter os filhos na escola. E o mesmo foi verdade da natureza Católica do regime, incluindo mandar meter cruxificos nas salas de aulas. Quem venha por bem, que leia a secção 5.2., página 429, do nosso artigo. (Também disponivel na página 29 e seguintes da versão em acesso aberto.)

A razão é simples: o povo era conservador. Para a monarquia, educar o povo não era uma prioridade política (pelas razões que Jaime Reis explicou nos anos 80, disponível aqui). Já a Primeira República até queria educar e construiu escolas, mas falhou. Porquê? porque o que tentou fazer seria como num país árabe ortodoxo hoje querer que as mulheres fossem para a escola sem hijab. Resultado: os pais não as punham na escola! não é possível desenvolver um país contra a cultura dominante do mesmo. Aliás, como Jaime Reis e eu explicamos no nosso artigo, até o republicano J. Camoesas tinha reconhecido publicamente em 1923 que a política de não separação de géneros e anti-clerical da República estava a falhar. Culturalmente, o país no início do século XX não era o que é hoje. Isto devia ser evidente.

Enfim, eu podia continuar a desmontar o chorrilho de disparates que representa a Irene Pimentel, mas não vale a pena. Quem queira ler sobre as matérias que ela escreveu, que leia antes trabalho de Duncan Simpson.

Do alto do seu patético prémio Pessoa, Pimentel tornou-se uma senadora da República mas o seu trabalho é sempre mau. Note-se aliás, que o “prémio” é absolutamente idiota e totalmente desconhecido fora das nossas fronteiras – apesar de eu reconhecer que já houve (uma minoria) de casos em que foi bem dado, por exemplo no caso do Henrique Leitão, que é excelente. Mas até um relógio parado acerta duas vezes por dia.

Termino notando que também eu, politicamente, condeno o Estado Novo em absoluto. Sempre o fiz, ao contrário do que por vezes dizem. Aliás, desafio quem quiser a encontrar declarações minhas em sentido contrário. Mas o que é falso é a ideia de que a culpa do atraso de Portugal se deve principalmente ao Estado Novo. Na verdade esse regime até correspondeu a um período de enorme convergência económica e educativa do país com a Europa Ocidental. Olhar para 1974 e dizer “ainda estávamos atrasados” é idiota pois ignora a enorme convergência das décadas anteriores que aconteceu com esse regime. Nada disso perdoa a polícia política nem a ditadura, mas isso é uma discussão à parte: não é preciso nem faz sentido misturar, e muito menos falsificar a História para sujar o regime o mais possível. Sujou-se o suficiente a si próprio!

Quem queira saber mais, pode ver outros posts nexte blogue de divulgação, ou ouvir alguns podcasts que tenho dado, como este ou este. E para quem queira saber ainda mais, há sempre os trabalhos científicos originais, a que me referi em cima. O que é essencial é não misturar questões positivas (descritivas) e normativas, como fazem os que têm objetivos políticos não declarados, como Irene Pimentel, Fernando Rosas, Pacheco Pereira, e tantos outros. Não são historiadores. São estoriadores. Não passam de políticos.

8 thoughts on “Falsificar a História, versão Irene Flunser Pimentel

  1. Eu sou da idade dessa senhora, por conseguinte vivi os mesmos anos do que ela, ao contrário dela não sou filho de pais ricos mas de um modesto operário, nunca andei em nenhum Liceu Francês, então o Liceu dos filhos bem dos senhores ricos, por conseguinte frequentei o Liceu e as Escolas dos pobres e só vejo disparates no que a senhora diz, mas é típico de gente da Extrema Esquerda caviar, filhos de gente rica que querem bancar a proletários.
    Infelizmente muita dessa gente ocupa altos cargos se bem que tenha mudado de partido, deixando esses grupelhos extremistas que chamavam ao PCP Partido Social Fascista.
    Mas há aqui uma frase nessa entrevista que é de bradar aos Céus e uma mentira pegada:

    “”…Claro que era completamente absurdo porque os salários eram de tal maneira baixos que homens, mulheres, crianças, velhos… todos trabalhavam. É outra das grandes mitologias Salazar queria que as mulheres retornassem ao lar, mas, na prática, isso nunca aconteceu, aliás a Maria Lamas…

    E.B.M.: Na obra As mulheres do meu país…

    I.F.P.: Escreve isso, mostra que não aconteceu. Há uma minoria de mulheres da média e alta burguesia que, de facto, não trabalhava, que tinha as suas empregadas — na altura, dizia-se criadas. Agora, as restantes, mesmo na pequena burguesia, todas trabalhavam…”””

    MENTIRA, a minha mãe nunca trabalhou fora de casa, assim como muitas mulheres que conheci minhas vizinhas ou familiares, trabalhou sim depois de Abril de 74 porque com a inflação e o aumento brutal do custo de vida após o 25 de Abril, ela foi obrigada nos fins dos anos 70 a trabalhar até aos 70 anos…
    Os meus pais eram tão pobres, que os meus calções eram feitas aproveitando as calças velhas do meu pai e as camisolas quando já velhas, eram desmanchadas e a minha mãe com os restos da lã de outras camisolas tricotava uma “nova” camisola.
    Mas em 74 já trabalhando, os meus fatos, calças e casacos eram feitos no alfaiate, foi um salto enorme e não era doutor ou engenheiro.
    Só conversa de “menina bem” armada em revolucionária vivendo às custas do papá, por acaso um “pobrezinho”!
    Pena, só entrevistarem essas pessoas, nunca quem realmente viveu esse tempo e era pobre ao contrário dessa senhora.
    Por aqui me fico porque já estou a ficar agoniado…
    Cumprimentos.

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  2. Efectivamente eu próprio me espantei quando ao ler a “História do Ensino em Portugal” de Rómulo de Carvalho, publicada em 1986, soube que a tal 4ª classe da República nunca existira, e que o Decreto que reduziu a exigência da 4ª para a 3ª classe se limitou a colocar a situação de acordo com a realidade, para evoluir a partir daí.

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